Réquiem para a clausura do mundo
Salmo 91 parte de um microcosmo específico (presídio do Carandiru) para pensar mais amplo
Jefferson Del Rios
para o Caderno 2
13/7/2007
Salmo 91 é um espetáculo de dureza total que consegue ser compassivo. Quando a luz do palco se acende em azul tênue e a voz dolorida de Elza Soares inicia O Meu Guri, de Chico Buarque, algo começa a prender a atenção do público; e assim será até o fim. O tema é uma volta ao cotidiano do Carandiru e ao massacre de 111 detentos. O livro do médico e escritor Drauzio Varella e o filme de Hector Babenco pareciam ter quase esgotado o assunto. O dramaturgo Dib Carneiro Neto intuiu que não, e estava certo. Se o presídio foi implodido, sua metáfora trágica continua intacta. Porque hoje, aparentemente, não cabe mais o conceito de que o homem é produto do meio. Os recentes atos de banditismo e barbárie no mundo mostram que a violência por mera perversidade está se alastrando. O Carandiru está à solta e não mais em decorrência exclusiva da miséria. É o que faz a peça Salmo 91 ir além de teorias econômico-sociológicas, sair do específico (o presídio paulistano) e pensar mais amplo.
Diante do grande impacto das obras anteriores (de Varella e Babenco), só uma escrita sensível, com idêntica reprodução cênica, poderia trazer algo de novo ao que varre o universo. Além do que se passa na maior cidade da América Latina, ódio e violência geram um inferno real em toda parte. Dois livros contundentes falam disso: Muito Longe de Casa - Memórias de um Menino Soldado, relato sobre crianças aprendendo a matar na guerra civil de Serra Leoa (Ediouro), de Ishmael Beah, que foi um desses garotos (quem chora pela África?) e o romance Abril Vermelho, de Santiago Roncagliolo (Alfaguara), sobre o Sendero Luminoso, a guerrilha alucinada do Peru, que já se começa a esquecer. Um dos pontos em comum entre esses testemunhos e a obra de Dib é a religião, ou fragmentos de crença mesmo em circunstâncias abjetas. A peça se chama Salmo 91, alusão ao Velho Testamento (salmos seriam orações do Rei Davi ao povo hebreu). Em face de evidências místicas e reais tão poderosas (já levadas ao livro e ao cinema), Dib Carneiro escolheu o que o budismo define como "o caminho do meio", o rumo alternativo aos extremos. O resultado traz uma espiral para que se possa meditar sobre o homem dentro do seu mistério.
São dez monólogos, dez situações, dez "des-humanidades". O espetáculo não começa: explode pelo talento de Pascoal da Conceição que, amarrado e imóvel, descreve o que foi o massacre e, furioso com o salmo pregado pela mãe, abre as portas do desespero de outros personagens. Assassinos de vários graus que absorveram os códigos da lei não escrita dentro das muralhas com milhares de homens encurralados. Há crimes a granel, crimes monstruosos, gestos inexplicáveis e um desfilar de temperamentos que vai do assassino orgulhoso ao que chora escondido temendo ver o filho na mesma situação. Há os que manipulam a realidade externa (mulheres, drogas, quadrilhas). Nessa arena exalando virilidade brutal (ser homem é "ter um pé atrás" e matar para se impor), os homossexuais são representados por dois casos distintos: o frágil e assustado e o tão audacioso e violento quanto os machos ostensivos. Neste ponto, a peça, sem alardes, mostra como a libido reprimida oferece surpresas.
Por uma feliz contradição, foi no enredo de prisão que o diretor, cenógrafo e figurinista Gabriel Vilella se libertou da tendência à encenação barroca que caminhava para a superabundância ornamental. Na transição, fez um cenário até precário (celas frágeis, muito recuadas e painéis com as conhecidas ilustrações de A Divina Comédia, de Dante). Sua montagem ecoa a versatilidade madura de Dib (o autor recente do afetivo Adivinhe Quem Vem para Rezar), escritor que incorpora jornalismo factual ao imaginário, para só editar o essencial. O equilíbrio com tensão contagia um elenco exemplar. Alternando os monólogos com Pascoal da Conceição, os atores Pedro Henrique Moutinho, Rodolfo Vaz (Grupo Galpão), Rodrigo Fregnan e Ando Camargo são, no momento, parte do melhor da nova geração dos palcos. Criam um clima de fornalha com uma brecha para a autocrítica da platéia. Serão apenas aqueles indivíduos os únicos cruéis?
Detalhe sutil: numa terra de intensa negritude, Pascoal (amarrado no início da encenação) surge ao final ostentando os colares preto e vermelho, salvo engano de Exu, orixá erroneamente associado ao Diabo. Trata-se de uma entidade mais complexa do candomblé. Gosta do ar livre. Rimando: Exu é o anti-Carandiru. Salmo 91, teatro de fundo meditativo, parece indagar para onde está indo a criatura que aprendemos ser a imagem e semelhança de Deus. Coerentemente, a ação termina com Réquiem, a missa fúnebre de Mozart.
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2 comentários:
Que bom que as opiniões sobre o espetáculos estão sendo positivas e produtivas...
Assisti a peça na última sexta-feira e só tenho elogios. Um tanto quanto polêmica, nos remete ao mundo complexo que era o Caradiru. Trata-se de um drama com uma pitada de comédia, principalmente quando se dá o monólogo do personagem do travesti Veronique, onde há comédia misturada a amargura do personagem.
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