segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Crítica de Deolinda Vilhena

Salmo 91, mais um espetáculo do "Anjo" Gabriel

Sexta, 27 de julho de 2007, 08h01


Deolinda Vilhena
, para o site Terra Magazine



Gabriel Villela escolheu cinco atores - Pascoal da Conceição, Rodolfo Vaz, Rodrigo Fregnan, Pedro Henrique Moutinho e Ando Camargo - para interpretarem os dez personagens que através de dez monólogos contam a história das vidas vividas dentro daquela que foi a maior penitenciária desse país, o Carandiru.

Salmo 91, a adaptação de Dib Carneiro Neto, do best-seller de Drauzio Varella, Estação Carandiru, coloca diante de nós "crônicas sobre formas de viver e morrer em estado de violência, descaso ou confinamento" que obrigaram Gabriel Villela, na direção e na criação dos cenários e dos figurinos, a abrir mão de sua natureza, mineiramente e deliciosamente, barroca.

Ainda que o cenário, composto por um palco nu transformado em corredor do Pavilhão 9 - onde foi deflagrada a briga que originou o massacre - com portas ao fundo, indique uma estética realista, a peça parece fugir do realismo. Algo parece avisar, o tempo todo, que estamos no teatro, o público ri muito, um riso nervoso e exala no ar a incômoda sensação de ser um espectador privilegiado da história e do cotidiano desses personagens, ou seria melhor dizer dessas pessoas?

Procuro e não encontro, o Gabriel Villela dos espetáculos anteriores. Desde que vi A Vida É Sonho, de Calderón de la Barca, com Regina Duarte interpretando o príncipe Segismundo o elegi meu diretor predileto.

Um dos meus espetáculos inesquecíveis é a encenação de Gabriel da adaptação para a rua de Romeu e Julieta, de William Shakespeare. Marco dos anos 90 que tive a ocasião de assistir várias vezes em condições diferentes, no Teatro João Caetano e na Praia do Arpoador. Imaginem o que foi esse espetáculo num final de tarde de sol numa das mais bonitas praias cariocas.

O que dizer de A Rua da Amargura? A bela parceria do Gabriel com o Grupo Galpão fez desse texto de Eduardo Garrido, que explora os ritos da Semana Santa nos circos-teatros, um espetáculo deslumbrante. Assisti meu último Gabriel Villela, em 1995, no teatro do SESC Copacabana, A torre de Babel, de Fernando Arrabal com Marieta Severo.

Posso compreender que Dib Carneiro Neto se sinta honrado por ter sua peça dirigida por Gabriel Villela: "É um diretor que faz parte da minha paixão pelo teatro. Ele é um diretor expansivo, efervescente, fervilhante de idéias - e percebi logo que nada do que ele faz em cena é viagem inconseqüente e puramente delirante, tudo é resultado de muito estudo, muito afinco, muita leitura prévia com os atores, muito embasamento teórico. Por exemplo: de cara, ele conseguiu enxergar em meus monólogos, dez arquétipos, dez figuras-chave do universo das tragédias gregas. Fiquei fascinado por seu nível de compreensão do texto, pela qualidade de sua interpretação daquilo que escrevi. Ele sabe o que quer, ele sabe o que faz e usa sua criatividade com a segurança de um verdadeiro artista".

Ao sair do teatro tinha a sensação de ter visto teatro. Coisa rara nos dias de hoje. Uma peça da qual não se sai impune. Penso no Véio Valdo, momento sublime de Pascoal da Conceição, e dias depois repito sozinha "num tô louco, eu tô é oco". A frase não sai da minha cabeça, normal, posto que a palavra é a verdadeira arma do espetáculo.

Gabriel Villela enveredou por um caminho diferente daquele ao qual ele havia acostumado seus admiradores, mas continua sendo o meu diretor favorito, se os cenários e os figurinos mudaram, o trabalho realizado com os atores continua um dos pontos altos do seu trabalho. Um espetáculo surpreendente, digno de ser visto. E revisto.

"Mil cairão à sua direita, e dez mil à sua esquerda, mas a ti nada acontecerá, nada te atingirá", diz o sobrevivente Dadá, citando o Salmo 91 que dá nome a peça e que, em meio a atual situação desse país, deveria ser o mantra do povo brasileiro. Afinal, Gabriel Villela não exagera ao dizer que "a bandeira do Brasil nasceu verde e está morrendo vermelha. O sangue e a barbárie são as imagens que traduzem o Brasil."


PS - Ao começar a escrever a coluna fui informada pela assessoria de imprensa do espetáculo dos problemas, ocorridos na sessão de sábado, decorrentes de uma acusação de que a peça faria apologia ao crime. Lamento a existência de pessoas incapazes de compreender que ao dar voz aos presos, ao humanizá-los, não é o crime que se defende, mas o direito de todo ser humano a uma segunda chance.

Registro aqui meu apoio a todo o elenco e a equipe técnica de Salmo 91. No blog do espetáculo www.salmocarandiru.blogspot.com há um texto de Maria Adelaide Amaral a respeito do ocorrido, que me faz pensar que nem tudo está perdido, "apesar de D. Karina e seus skinheads, achei muito legal o teatro voltar a mobilizar as pessoas. Significa que ele incomoda e subverte, dá conta da sua importância num momento em que o teatro deixou de ter a importância que teve nos anos 60 e 70. Salmo 91 teve seu momento de Roda-Viva, sem as agressões físicas e depredações, porque afinal o público se mobilizou e as instituições bem ou mal garantem o exercício da democracia".


Deolinda Vilhena é jornalista, produtora cultural, mestre em Artes pela ECA-USP, mestre e Doutora em Estudos Teatrais pela Sorbonne Nouvelle-Paris III

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