segunda-feira, 3 de setembro de 2007

5 perguntas de Gabriel Villela para Drauzio Varella

DE VILLELA PARA VARELLA

Gabriel Villela - Bem poucos livros brasileiros recentes atraíram tanto e tão imediatamente o interesse de adaptadores. Estação Carandiru já foi para a TV, o cinema e o teatro. Por que esse tema da clausura atrai tanto as artes? E de que forma cada uma dessas adaptações contribuiu para a difusão das idéias do livro?
Drauzio Varella - A Casa de Detenção era um sistema fechado em que viviam mais de 7 mil prisioneiros, visíveis apenas nas tragédias das grandes rebeliões. Se esse caldeirão sujeito a explosões periódicas assustava a cidade, contraditoriamente despertava a curiosidade de todos. Quem seriam aqueles homens?Que leis regeriam seu comportamento? No livro, procurei descrever o ambiente da cadeia, seus personagens, o código penal não-escrito, a rigidez das leis internas e as paixões humanas daquele universo. Tenho a impressão de que o interesse em levar o texto para cinema, teatro e TV veio da ausência de juízo de valores que conferiu dramaticidade ao relato.

Gabriel - Você está há quase um ano trabalhando na penitenciária feminina de São Paulo. É possível estabelecer diferenças no seu trabalho em relação ao presídio masculino?

Drauzio - Um ano é período insignificante para penetrar o universo de um presídio. Ainda mais quando se trata de uma cadeia com cerca de 3 mil mulheres. As leis que regem a conduta parecem semelhantes, mas são muito diferentes das masculinas. Como ao homem é cara a obediência à hierarquia, fica fácil entender as relações de domínio e submissão, a estrutura das coalizões e da organização dos grupos na disputa pelo poder. Embora também exista hierarquia entre as mulheres prisioneiras, não se percebe a mesma linearidade. As relações são mais complexas porque as mulheres funcionam em rede. Apesar de muitas vezes dar a impressão contrária, a mulher é sobretudo contestadora e avessa à submissão hierárquica. Para complicar ainda mais, há a questão sexual: enquanto a homossexualidade masculina denigre socialmente a imagem do homem, a feminina é adotada com naturalidade pelas presas.

Gabriel - Salmo 91 concentra, em seus dez monólogos, muito mais do que apenas dez personagens do seu livro. Como você convive com essa síntese? E de qual dos personagens da peça, você sente mais saudades?
Drauzio - O grande mérito do Dib Carneiro Neto foi escrever um texto que respeitou não apenas o conteúdo do livro, mas as características dos personagens, da prisão e, especialmente, a linguagem dos presos para criar uma polifonia de forte conteúdo dramático. Ao assistir o espetáculo fiquei com a impressão esquizofrênica de que estava vendo um texto meu e, ao mesmo tempo, outro muito melhor. Quanto ao personagem de que mais me emocionou foi o do Velho Valdo. Primeiro porque lembrei do homem, depois porque a interpretação do Pascoal da Conceição é das mais tocantes que já vi nos palcos.

Gabriel - Como escreveu Dostoievski, em Recordação da Casa dos Mortos, ''''os médicos representam, para os prisioneiros, autênticos refúgios, e nunca estabelecem diferença alguma entre um condenado e um civil''''. Como você avalia hoje, passados tantos anos, a sua atuação/missão/contribuição de médico voluntário dentro do Carandiru? Houve momentos de preconceito seu, na relação com os criminosos?Drauzio - É sempre difícil avaliar experiências que mudam o destino de quem as viveu. Cheguei à Casa de Detenção em 1989, e nunca mais consegui sair das cadeias. É lógico que poderia parar com esse trabalho - talvez fosse até mais sensato -, mas acho que não suportaria a falta de convivência com o barulho das portas de ferro, com os doentes atendidos à moda antiga só com um estetoscópio e me afastar dos agentes penitenciários com os quais me reúno a cada 15 dias para tomar cerveja e contar histórias de cadeia. Se o fizesse, meus horizontes se tornariam mais previsíveis, minha existência mais medíocre. Quanto à frase de Dostoievski, acho que ele foi ingênuo ou deve ter conhecido na Sibéria médicos mais altruístas do que eu. Mais de uma vez tive preconceito contra um preso e fiquei chocado com as perversidades cometidas entre eles. Diante de um corpo esfaqueado mais de 50 vezes, nunca deixei de me revoltar contra a sanha assassina dos que praticaram tal ato.

Gabriel - Houve um período, durante a temporada de Salmo 91 no Sesc, em que uma polêmica se instalou, porque certos setores da sociedade temem o que chamam de ''''apologia do crime'''' no mundo das artes. Em outros momentos da história do País, geralmente diante de algum crime hediondo, até intelectuais de esquerda repensam a pena de morte. Na sua avaliação, qual foi a contribuição de Estação Carandiru para esse debate? E por que o Brasil ainda repete, em tantos outros presídios, os mesmos erros e a mesma falta de humanismo do Carandiru?Drauzio - Mesmo o mais despreparado espectador notará que a peça mostra ladrões, estelionatários e assassinos contando histórias pessoais no centro do palco. Em nenhum momento pretende defender ninguém ou fazer apologia do crime. Acho que essas reações acontecem porque o tema toca no cerne da questão da violência urbana. Gostemos ou não, o pior assassino sente medo, amor pela mãe, alegria, tristeza, tédio, saudades. O fato de o escritor descrever e o ator interpretar as agruras vividas por esse homem não significa justificar seus crimes, muito menos defender a impunidade. No Brasil, o sistema penitenciário continua desumano e repete os erros do Carandiru, por uma simples razão: quem tem dinheiro não vai preso. Quando motoristas bêbados, estelionatários do sistema financeiro, empresários corruptos forem para a cadeia em companhia de deputados, senadores, ministros e juízes ladrões, o sistema se humanizará.

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