terça-feira, 4 de setembro de 2007

Carta a um adaptador, por Alcides Nogueira

Caro adaptador,
Você me disse no saguão do teatro do Sesc Santana: a matriz é muito boa! Não... A matriz, realmente, é muito boa, é semente fértil, mas o seu texto é outra obra! Você encontrou a maneira de contar aquela história tão dolorosa, tão horrenda, tão cruel, sem explicitar a dor, nem o horror, nem a crueldade. Para quê? Ela já é um corte fundo. Para quê bolas de fogo, rajadas de metralhadoras, banhos de sangue, ninjas correndo? Para quê? Para quê? para nada... Seu texto, tão sábio e vigoroso, é um cipó que vai nos amarrando àquelas pessoas – nem melhores nem piores que nós – miseravelmente condenadas ao ralo por nossos atos e omissões... Mais que qualquer outra coisa, é essa fratura assepticamente exposta que me detona. Mesmo que eu quisesse, não havia mais como cortar o cipó e me livrar de tudo aquilo. Sou cúmplice! Você armou a peça de tal forma, que não permite essa fuga, não mostra a porta de saída, não fornece um manual de sobrevivência! Você não deixa clarabóia alguma para que surja um pouco de ar, ou um buraco para o sol entrar. Tudo é contado como uma verdade em si, sem maquiagem, sem nada que se possa questionar... Não há moralismo, julgamento, questionamento... É a dor escorrendo pelas palavras de uma forma tão caudalosa, que não há como ser rotulada... Mais dor? Menos dor? Qual a condição daqueles seres humanos? Ratazanas de um bueiro? Não... não cabe nada disso... Você não coloca moldura! Você deixa que os relatos entrem em nossas cabeças, de maneira abrupta... não há como barrar suas palavras. Elas têm o mesmo poder do salmo... Mas é um poder invertido, que, em vez de invocar graças, revela as desgraças... todas as que, com meu medo e conivência, continuarão a existir! Salmo 91 nos leva novamente para o teatro em sua plenitude: o elo com o sagrado... que não se rompe... o fio de prata que nos liga ao conhecimento.
ALCIDES NOGUEIRA
escritor, dramaturgo e autor de novelas e minisséries

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