DIA SEGUINTE A ESTRÉIA DA PEÇA, NO SESC SANTANA, GABRIEL, NOSSO DIRETOR, MARCOU REUNIÃO PARA CINCO DA TARDE, REUNIU O ELENCO E ASSISTENTES DE DIREÇÃO E MANDOU BALA COM ESTAS PALAVRAS:
"CINCO PONTOS
Primeiro ponto:
o ator tem que ter ir pra cena com a consciência de que está trabalhando com uma dimensão épica do relato e não deve permitir que a máscara tome conta do seu rosto, ou seja, não colocar o personagem, a máscara, entre a sua consciência de estar em cena e a lucidez da platéia de estar assistindo.
Em outras palavras não ficar fazendo careta repetitiva de emoções que já não sente mais; estudar e renovar estas emoções com consciência de que é isso que o diretor quiz quando colocou ele ali e ele concordou com isso.
O segundo ponto
é o ponto de contacto dessas máscaras com outros vários pontos e a relação entre si desses pontos de contato. Ou seja, todos, todo mundo precisa estar consciente de que é responsável por aquela máscara naquele instante da cena e por toda a idéia que está transitando pelo espetáculo inteiro; tendo pontos, contactando-os, unindo cada um deles, ao invés de tornar solitária a sua experiência em cena e com isso abandonar a relação com a idéia maior, perdendo o distanciamento acordado inicialmente e permitindo que a máscara grude no rosto, fora de uma vivência crítica.
Aquela coisa de se defender e pronto, perdendo a ligação com "por que, pra que, pra quem..."
O terceiro ponto
é a dinâmica física do espetáculo.
O ator deve saber que o tempo inteiro de circulação, dentro ou fora, na cena ou nas coxias, ele continua com responsabilidade sobre a cena.
Não é porque ele vai pra coxia, pro chuveiro, pro café, mudar de roupa, conhaque ou pra qualquer lugar, enfim, ele pode se permitir desligar.
É um coletivo, o ator que está em cena tem a percepção, por não estar grudado à máscara, não estar mascarado, que ele está ligado a toda contra-regragem, bilheteria, rua, cidade, mundo, irmanado ao coletivo e não deve abandonar nem ser abandonado pelo todo.
Quanto a contra-regragem, a relação com os objetos de cena, ATENÇÃO:
ator não é um contra-regra, ele exercita a contra-regragem, porque tem uma consciência gigante dos objetos; sabe como foram descobertos, construídos, acompanhou como cada um foi pra cena, tem uma consciência afetiva desses objetos, uma relação inteligentecom eles; acima de tudo vamos usar a musculatura da inteligência.
O penúltimo ponto
é o conceito da qualidade do verbo, feito no presente o tempo inteiro como relato trágico,
Mesmo que no nosso caso específico, ele venha a fundir gêneros, (melodrama, trágico, patético, bizzaro, barra pesada) é preciso manter a consciência de tudo isso no verbo, na musculatura verbal. Uma musculatura que não se afrouxa, se vitaliza.
Na vida cotidiana, a musculatura verbal não é tão exigida como no teatro, e muito dessa musculatura, em repouso, fica esquecida. A boca que fala 'a fala', o que precisa ser dito, refletido, levado adiante, a boca que fala o verbo deste espetáculo, tem que ter seus músculos acionados e exigidos com saúde.
Coisa que o cotidiano ditado pelo estatuto burguês, não pede pra ninguém, aliás, se você entra e fala com musculatura em qualquer ambiente, você derruba esse lugar.
O quinto ponto
é o ponto do futebol, que fez nosso trabalho corporal e que linka tudo.
Eu quero atores em continuidade, em estado contínuo de elaboração.
Que ajam como atores de coletivo. Tem aquele corredor, atrás do palco, (estávamos no SESC Santana) lá onde fica a mesa do lanche e do café. Tirem a mesa, façam dois gols e disputem um futebol entre vocês todo dia.
Daí vocês vão ver que o futebol, que nós achamos intuitivamente lá atrás, no nosso passado de ensaios, como preparação do corpo do ator, como forma de tomarmos conta do espaço, quando nem nos conhecíamos direito, quando éramos estrangeiros vindo de mundos diferentes,
o futebol que nos ligou, é o meio da gente inaugurar a noite de prodígios, que é a noite do espetáculo.
Uma noite de 'prodígios', que tem a mágica do futebol para resgatar brasileiramente essa unidade.
Joguem o jogo, com bola ou sem, exercitem o passe, a disputa, a reação.
Esse nosso teatro é futebol, é ele que unifica os cinco atores em torno de uma bola;
o bate bola, a competição entre os times de atores, é bacana, porque estabelece concretamente um vai e vem de trocas de adrenalina, hormônio, suores, contatos;
daí que quando pára esse futebol da preparação corporal diária, encerrando o esquentamento pra o espetáculo do dia, vocês vão perceber que ele não acaba:
você vai pra sua concentração pessoal, tua maquiagem, passar teu texto, aquecer tua voz, está na sua, mas o futebol já editou vocês, atores, todo mundo, ele já rompeu a relação de todos com o cotidiano de vida burguesa, bundona, enfim, já espatifou esse corpo domesticado pela relação automatizada com tudo que a vida tem e aí sim, nos renova trazendo outro corpo para a cena, para a relação espetacular que se apresenta: o jogo teatral oferecido por aquele dia, o dia único da peça.
Mais ainda, esse futebol diário traz a memória de nossos ensaios, a memória de nosso primeiros momentos, memória afetiva, de coletivo, que restabelece dia a dia o vínculo de continuidade; memória das nossas vitórias, empates e perdas.
Uma pelada jogada que hoje foi 5 a 2, um ganhou outro perdeu, e que amanhã pode virar, isso é muito saudável, uma forma de impedir que a inércia tome conta da rotina do ator.
Acho que é isso."
Pascoal da Conceição
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Um comentário:
Pascoal, seu "senso de noção", como dizem, me arrepia e me emociona. Não há melhor momento do que este (prêmios pra uns, não-prêmios pra outros), para a gente voltar os olhos e a nossa atenção para os cinco pontos que o nosso genial diretor fez questão de explicitar no início da montagem. Realmente, relendo todos os cinco pontos, a gente entende "de onde vem o baião", a gente entende de onde vem todo esse reconhecimento e essa consagração, de onde vem o Shell, o APCA, o Qualidade Brasil, o Poeira, a crítica da dona Bárbara... Nasceu ali, com ele - anjo safado mineiro - e com seu pulso firme. Nasceu com sua potência de diretor que, desde o começo, sabia o que queria e para onde deveria confluir esta montagem. Que lucidez nos cinco pontos, que perspicácia, que inteligência... É lindo ter isso registrado no blog desde a época da estréia, no ano passado, porque, agora, depois de tudo e durante tudo, a gente confere e vê quanta lucidez havia desde o início em nosso capitão barroco.
Parabéns, Pascoal, por nos fazer reler agora esse post do nosso blog. O bem-sucedido e reconhecido e premiado 'Salmo 91' somos todos nós, sim, mas é, sobretudo, Gabriel Villela.
E nessa família 'salmoniana' em que a gente se transformou, você, Pascoal da Conceição, parece mesmo ser o nosso grilo falante da consciência, ou o nosso mago da bondade. Ou o bruxo da justiça. Sempre 'amando o teatro', claro.
bjs. do autor-vivo, DIB.
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