segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

MUDAR

TEXTO DE EDUARDO SOARES NO LIVRO CABEÇA DE PORCO, ESCRITO COM CELSO ATHAYDE E MV BILL:

"É difícil mudar. Muito difícil.
Doloroso e angustiante.
Primeiro, porque a ousadia de mudar-se a si mesmo envolve cortejar a morte. Na mudança, uma parte de nós perece; um modo de sermos nós mesmos entra em colapso.
Segundo, porque enfrentamos a resistência organizada das instituições e a oposição ferrenha de todo mundo que nos cerca.
Unem-se numa brigada contra a mudança aqueles que, de uma forma ou de outra, nos conhecem, dão testemunho de nossa biografia e zelam pela imutabilidade.
Engana-se quem imagina que contará com o apoio alheio ao projeto de transformar-se, mesmo que a mudança seja um imperativo social e um desejo coletivo.
Equivoca-se o sonhador ingênuo que espera estímulo à mudança por parte das instituições supostamente destinadas a promovê-la, por paradoxal que pareça.

Este é o fato: há uma conspiração pela fixação de identidades e pelo congelamento de suas respectivas qualificações, especialmente se tais qualificações forem estigmatizantes.

Mas a pior notícia é a seguinte: nós tomamos parte na conspiração; participamos e contribuímos para a blindagem ontológica que coagula a história e engessa processos biográficos.


A clínica da drogadição é rica em casos surpreendentes, para os quais a abordagem sistêmica oferece explicações plausíveis:
ocorre com muito maior freqüência do que se poderia imaginar que, por exemplo , a esposa, depois de lutar com todas as suas forças contra o alcoolismo do marido, durante anos, se desestruture quando finalmente obtém a cura desejada.
Nesses casos surpreendentes, quando seu marido se recupera, abandona o álcool e retoma sua vida, volta ao trabalho, reencontra uma rotina funcional, a esposa entra em crise, se divorcia, torna-se alcoólatra ou busca o suicídio.
Compreende-se: afinal, um sistema de interações se organizara, alcançara equilíbrio e velocidade de cruzeiro, conquistara autonomia e se enrijecera, reafirmando valores, distribuindo qualidades, responsabilidades, méritos e culpas.
Enquanto seu marido estivera doente, recolhido a casa ou clínica para tratamento, a mulher tornara-se, diante dos filhos, da comunidade e de si mesma, líder da unidade doméstica, chefe da família, portadora de autoridade e responsabilidades especiais, todas cercadas de sinais positivos. Esta valorização de seu papel compensava o sacrifício e a sobrecarga de trabalho.
Tudo isso rui com o retorno à vida útil e saudável de seu marido - retorno que, paradoxalmente, ela tanto almejara. A ruína do arranjo social e psicológico, moral e simbólico, micropolítico e cultural, proporcionado pela patologia do marido, reenvia a mulher a uma posição anterior (qualquer que ela tenha sido), posição com a qual ela não mais se identifica e à qual ela passa a ter grandes dificuldades de adaptação.
O novo sistema, armado pela e para doença, não pode suportar a cura e não está preparado para conviver, admitir, acolher e valorizar a saúde.
É por isso que os psicanalistas esperam crises nas relações de seus novos pacientes com a família e com o círculo de relações intimas, porque a mera possibilidade de mudança real ou imaginária de um dos membros da rede social a coloca em xeque, na medida em que pode vir a significar risco de subversão das condições que a tornam possível, tal como ela existe e se reproduz (com seu equilíbrio e seu desequilíbrio, sua estabilidade e sua instabilidade).
Mesmo que a eventual mudança reduza aspectos negativos das relações e fortaleça características positivas, há sempre em jogo o risco de perdas.
Ou seja, todos os envolvidos numa teia de relações na qual se inocule o DNA da mudança sentem-se, direta ou indiretamente, atingidos, provocados, mobilizados. Há temor de que os lados sombrios de cada um sejam tocados, acionados, desnudados; há expectativa de que se desencadeie um processo fora de controle que ameace certezas e seguranças individuais.

EM UMA PALAVRA: AS PESSOAS NÃO TEMEM APENAS TRANSFORMAÇÕES PARA PIOR. TEMEM TRANSFORMAÇÕES E PRONTO.

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