quarta-feira, 20 de junho de 2007

Em primeira mão, texto do autor no programa da peça


Clausura no palco

E eis que bandidos inescrupulosos, matadores impiedosos, criminosos revoltantes nos contam histórias. O impacto dessa leitura foi enorme. Fechei a última página absolutamente fascinado. Por isso, não demorei muito tempo: o livro foi lançado em 1999 e no fim desse mesmo ano eu já tinha terminado minha adaptação teatral daquele que viria a ser um best seller de marcar época na história do mercado editorial brasileiro (460 mil exemplares vendidos desde então). Armado de certa coragem, mas ainda assim muito tímido e vacilante, telefonei para o autor do livro para pedir que lesse minha adaptação. Teclei o número do consultório do dr. Drauzio Varella, com o coração aos pulos, ciente de que estava tomando uma atitude ousada: até então, eu nunca tinha escrito nada para teatro e achava que já poderia começar assim... adaptando Estação Carandiru??!!
Drauzio também não demorou nada. Pouco mais de uma semana depois de receber meu texto, telefonou-me de volta para dizer que se sentia muito honrado com a adaptação, que não imaginava que seus escritos pudessem resultar em peça de teatro, que a retumbante acolhida do livro ainda era recente e de certa forma o assustava, e que ele era “apenas” um médico e não entendia dessas coisas de direitos de adaptação etc. etc. etc.
A reação de Drauzio Varella ao meu texto inegavelmente invasivo – que reconta suas histórias, despreza algumas delas, faz cada personagem da peça conter em si várias passagens do livro, suprime sem cerimônia a figura do médico-narrador, alinhava as ações a partir da presença pesada de uma Bíblia martelando versículos na cabeça de confinados pecadores – foi a reação típica de um ser humano de sua estirpe: generoso de antemão e respeitoso por princípio.
E eis que agora, em 2007, minha adaptação de aprendiz chega ao palco. Depois de oito anos na gaveta. Depois de um grandioso filme que, como o livro, também marcou época, visto por mais de 4,5 milhões de pessoas no Brasil, além da carreira no exterior. Depois de uma série para a TV impecavelmente produzida e com invejáveis índices globais de audiência. Depois que os dois produtos (filme e série) venderam como água no formato de DVD. Depois de uma inusitada adaptação para a rádio BBC, de Londres, feita por Paul Heritage e Kate Howland, em 2002. Depois de mais livros lançados pelo grande escritor Drauzio Varella, que continua achando que é “apenas” um médico. Depois de duas ótimas peças teatrais baseadas em seu antológico conto Bárbara, também remetendo ao complexo do Carandiru.
E mais: Depois da implosão do presídio, ocorrida numa espetaculosa ação de mídia ­– cena barulhenta e plástica, própria para subirem os letreiros finais de todos os ‘fantásticos shows da vida’. Depois que os ataques do PCC escancararam para populações em pânico o que toda a poeira mítica daquela implosão não conseguiu encobrir: a crise, sem solução à vista, do sistema penitenciário brasileiro. Depois que crimes hediondos (João Hélio, 6 anos, arrastado pelas ruas do Rio) fizeram intelectuais humanistas repensarem a legitimidade da pena de morte, tingindo páginas e mais páginas de jornais com a tinta indulgente de seus artigos cultos sobre civilização e barbárie. Reeducar ou punir? Recuperar ou castigar? Vigiar ou... eliminar? Quais pensadores ou quais governantes, livres de culpas, hipocrisias e interesses, terão alternativas a propor? Que justa sociedade será um dia capaz de resolver o dilema da clausura?
Enquanto isso, que toque o terceiro sinal. E que o expansivo mineiro Gabriel Villela faça abrir as cortinas e as asas de seu efervescente talento, alimentando-se da sabedoria das tragédias gregas para reerguer os muros arquetípicos de uma estação chamada Carandiru. E que 111 homens caiam de novo à nossa direita ou à nossa esquerda, sem que nada (nada mesmo?!) nos aconteça, como apregoa o salmo de número 91. E que, então, a pungência dos relatos de Drauzio Varella, unindo-se finalmente à contundência artística de uma encenação teatral, ressoe em todos nós, cúmplices-sobreviventes, a importância de continuar sonhando com um mundo melhor.

Dib Carneiro Neto, julho de 2007

7 comentários:

Carlos Augusto disse...

muito bom o texto... gostaria de perguntar ao autor, se ele tivesse de escolher 3 dos principais monólogos, quais escolheria?

Cinthia Prem disse...

dos principais monólogos é boa...

dib disse...

caríssimo claudio, gosto dos 10 filhos do mesmo jeito, e amor com amor se paga, e futebol é sempre uma caixinha de surpresas, e comigo ou sem migo a bola tem de rolar, e, nada contra, mas duas folhas de papel são mais do que suficientes para enxugar as mãos...

Drink Com as Estrelas disse...

sendo assim, eu lavo as minhas...

Drink Com as Estrelas disse...

o louco também é que o texto já tem a data do mês que vem.

Nanda Rovere disse...

Estação Carandiru é uma obra especial pra caramba. Deu voz á pessoas excluídas da nossa sociedade e, a cada capítulo, nos faz refletir sobre o mundo em que vivemos (cruel, mas que ainda tem resquícios de poesia...poesia que está presente nos espetáculos que o Gabriel (Villela) dirige.

Anônimo disse...

Gostaria de saber se já exite projeto de turnê desta peça e se tem previsão de sua chegada em Brasília.