Clausura no palco
E eis que bandidos inescrupulosos, matadores impiedosos, criminosos revoltantes nos contam histórias. O impacto dessa leitura foi enorme. Fechei a última página absolutamente fascinado. Por isso, não demorei muito tempo: o livro foi lançado em 1999 e no fim desse mesmo ano eu já tinha terminado minha adaptação teatral daquele que viria a ser um best seller de marcar época na história do mercado editorial brasileiro (460 mil exemplares vendidos desde então). Armado de certa coragem, mas ainda assim muito tímido e vacilante, telefonei para o autor do livro para pedir que lesse minha adaptação. Teclei o número do consultório do dr. Drauzio Varella, com o coração aos pulos, ciente de que estava tomando uma atitude ousada: até então, eu nunca tinha escrito nada para teatro e achava que já poderia começar assim... adaptando Estação Carandiru??!!
Drauzio também não demorou nada. Pouco mais de uma semana depois de receber meu texto, telefonou-me de volta para dizer que se sentia muito honrado com a adaptação, que não imaginava que seus escritos pudessem resultar em peça de teatro, que a retumbante acolhida do livro ainda era recente e de certa forma o assustava, e que ele era “apenas” um médico e não entendia dessas coisas de direitos de adaptação etc. etc. etc.
A reação de Drauzio Varella ao meu texto inegavelmente invasivo – que reconta suas histórias, despreza algumas delas, faz cada personagem da peça conter em si várias passagens do livro, suprime sem cerimônia a figura do médico-narrador, alinhava as ações a partir da presença pesada de uma Bíblia martelando versículos na cabeça de confinados pecadores – foi a reação típica de um ser humano de sua estirpe: generoso de antemão e respeitoso por princípio.
E eis que agora, em 2007, minha adaptação de aprendiz chega ao palco. Depois de oito anos na gaveta. Depois de um grandioso filme que, como o livro, também marcou época, visto por mais de 4,5 milhões de pessoas no Brasil, além da carreira no exterior. Depois de uma série para a TV impecavelmente produzida e com invejáveis índices globais de audiência. Depois que os dois produtos (filme e série) venderam como água no formato de DVD. Depois de uma inusitada adaptação para a rádio BBC, de Londres, feita por Paul Heritage e Kate Howland, em 2002. Depois de mais livros lançados pelo grande escritor Drauzio Varella, que continua achando que é “apenas” um médico. Depois de duas ótimas peças teatrais baseadas em seu antológico conto Bárbara, também remetendo ao complexo do Carandiru.
E mais: Depois da implosão do presídio, ocorrida numa espetaculosa ação de mídia – cena barulhenta e plástica, própria para subirem os letreiros finais de todos os ‘fantásticos shows da vida’. Depois que os ataques do PCC escancararam para populações em pânico o que toda a poeira mítica daquela implosão não conseguiu encobrir: a crise, sem solução à vista, do sistema penitenciário brasileiro. Depois que crimes hediondos (João Hélio, 6 anos, arrastado pelas ruas do Rio) fizeram intelectuais humanistas repensarem a legitimidade da pena de morte, tingindo páginas e mais páginas de jornais com a tinta indulgente de seus artigos cultos sobre civilização e barbárie. Reeducar ou punir? Recuperar ou castigar? Vigiar ou... eliminar? Quais pensadores ou quais governantes, livres de culpas, hipocrisias e interesses, terão alternativas a propor? Que justa sociedade será um dia capaz de resolver o dilema da clausura?
Enquanto isso, que toque o terceiro sinal. E que o expansivo mineiro Gabriel Villela faça abrir as cortinas e as asas de seu efervescente talento, alimentando-se da sabedoria das tragédias gregas para reerguer os muros arquetípicos de uma estação chamada Carandiru. E que 111 homens caiam de novo à nossa direita ou à nossa esquerda, sem que nada (nada mesmo?!) nos aconteça, como apregoa o salmo de número 91. E que, então, a pungência dos relatos de Drauzio Varella, unindo-se finalmente à contundência artística de uma encenação teatral, ressoe em todos nós, cúmplices-sobreviventes, a importância de continuar sonhando com um mundo melhor.
Dib Carneiro Neto, julho de 2007
E eis que bandidos inescrupulosos, matadores impiedosos, criminosos revoltantes nos contam histórias. O impacto dessa leitura foi enorme. Fechei a última página absolutamente fascinado. Por isso, não demorei muito tempo: o livro foi lançado em 1999 e no fim desse mesmo ano eu já tinha terminado minha adaptação teatral daquele que viria a ser um best seller de marcar época na história do mercado editorial brasileiro (460 mil exemplares vendidos desde então). Armado de certa coragem, mas ainda assim muito tímido e vacilante, telefonei para o autor do livro para pedir que lesse minha adaptação. Teclei o número do consultório do dr. Drauzio Varella, com o coração aos pulos, ciente de que estava tomando uma atitude ousada: até então, eu nunca tinha escrito nada para teatro e achava que já poderia começar assim... adaptando Estação Carandiru??!!
Drauzio também não demorou nada. Pouco mais de uma semana depois de receber meu texto, telefonou-me de volta para dizer que se sentia muito honrado com a adaptação, que não imaginava que seus escritos pudessem resultar em peça de teatro, que a retumbante acolhida do livro ainda era recente e de certa forma o assustava, e que ele era “apenas” um médico e não entendia dessas coisas de direitos de adaptação etc. etc. etc.
A reação de Drauzio Varella ao meu texto inegavelmente invasivo – que reconta suas histórias, despreza algumas delas, faz cada personagem da peça conter em si várias passagens do livro, suprime sem cerimônia a figura do médico-narrador, alinhava as ações a partir da presença pesada de uma Bíblia martelando versículos na cabeça de confinados pecadores – foi a reação típica de um ser humano de sua estirpe: generoso de antemão e respeitoso por princípio.
E eis que agora, em 2007, minha adaptação de aprendiz chega ao palco. Depois de oito anos na gaveta. Depois de um grandioso filme que, como o livro, também marcou época, visto por mais de 4,5 milhões de pessoas no Brasil, além da carreira no exterior. Depois de uma série para a TV impecavelmente produzida e com invejáveis índices globais de audiência. Depois que os dois produtos (filme e série) venderam como água no formato de DVD. Depois de uma inusitada adaptação para a rádio BBC, de Londres, feita por Paul Heritage e Kate Howland, em 2002. Depois de mais livros lançados pelo grande escritor Drauzio Varella, que continua achando que é “apenas” um médico. Depois de duas ótimas peças teatrais baseadas em seu antológico conto Bárbara, também remetendo ao complexo do Carandiru.
E mais: Depois da implosão do presídio, ocorrida numa espetaculosa ação de mídia – cena barulhenta e plástica, própria para subirem os letreiros finais de todos os ‘fantásticos shows da vida’. Depois que os ataques do PCC escancararam para populações em pânico o que toda a poeira mítica daquela implosão não conseguiu encobrir: a crise, sem solução à vista, do sistema penitenciário brasileiro. Depois que crimes hediondos (João Hélio, 6 anos, arrastado pelas ruas do Rio) fizeram intelectuais humanistas repensarem a legitimidade da pena de morte, tingindo páginas e mais páginas de jornais com a tinta indulgente de seus artigos cultos sobre civilização e barbárie. Reeducar ou punir? Recuperar ou castigar? Vigiar ou... eliminar? Quais pensadores ou quais governantes, livres de culpas, hipocrisias e interesses, terão alternativas a propor? Que justa sociedade será um dia capaz de resolver o dilema da clausura?
Enquanto isso, que toque o terceiro sinal. E que o expansivo mineiro Gabriel Villela faça abrir as cortinas e as asas de seu efervescente talento, alimentando-se da sabedoria das tragédias gregas para reerguer os muros arquetípicos de uma estação chamada Carandiru. E que 111 homens caiam de novo à nossa direita ou à nossa esquerda, sem que nada (nada mesmo?!) nos aconteça, como apregoa o salmo de número 91. E que, então, a pungência dos relatos de Drauzio Varella, unindo-se finalmente à contundência artística de uma encenação teatral, ressoe em todos nós, cúmplices-sobreviventes, a importância de continuar sonhando com um mundo melhor.
Dib Carneiro Neto, julho de 2007
7 comentários:
muito bom o texto... gostaria de perguntar ao autor, se ele tivesse de escolher 3 dos principais monólogos, quais escolheria?
dos principais monólogos é boa...
caríssimo claudio, gosto dos 10 filhos do mesmo jeito, e amor com amor se paga, e futebol é sempre uma caixinha de surpresas, e comigo ou sem migo a bola tem de rolar, e, nada contra, mas duas folhas de papel são mais do que suficientes para enxugar as mãos...
sendo assim, eu lavo as minhas...
o louco também é que o texto já tem a data do mês que vem.
Estação Carandiru é uma obra especial pra caramba. Deu voz á pessoas excluídas da nossa sociedade e, a cada capítulo, nos faz refletir sobre o mundo em que vivemos (cruel, mas que ainda tem resquícios de poesia...poesia que está presente nos espetáculos que o Gabriel (Villela) dirige.
Gostaria de saber se já exite projeto de turnê desta peça e se tem previsão de sua chegada em Brasília.
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