Há um ano, o francês Loïc Wacquant passou pelo Brasil quase despercebido. Professor de Sociologia da Universidade da Califórnia-Berkeley e pesquisador do Centro de Sociologia Européia do Colégio de França, desta vez Wacquant teve uma semana cheia no Rio, entre palestras e lançamentos de dois livros: As prisões da miséria (Jorge Zahar) e Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia), parte de uma trilogia completada na semana seguinte com o lançamento de Os Condenados da Cidade (Revan), uma análise das novas formas de pobreza que o novo Estado penal está tentando conter. MaisHumana esteve com Wacquant durante uma conferência na Universidade Cândido Mendes, a qual foi dedicada pelo escritor “aos 180 mil presos do Brasil”. “Não por provocação”, ressalvou, “mas para lembrar que fazem parte da sociedade e devem ter acesso aos direitos fundamentais dos homens do planeta”. O sociólogo denuncia a dominância de uma política de mercado onde o crime é não ser consumidor. Ele estuda o processo da privatização das prisões e da criminalização da pobreza nos EUA, e aponta a existência de um caminho perigoso que o Brasil parece estar tentado a seguir.
Em meados de 1970, criminologistas apostavam que os americanos formariam a primeira sociedade humana sem prisões – afinal, as estatísticas evidenciavam queda no crescimento da quantidade de crimes praticados no país. Como explicar que, ao contrário disso, tenha acontecido um crescimento maciço da população carcerária americana nos últimos 25 anos, um fenômeno social sem precedentes e que extrapola até mesmo os índices de aumento da criminalidade no país?
A resposta é que existe um grande interesse no encarceramento em massa da população pobre. É uma política que atende ao mercado, não só isolando os indesejáveis como gerando a lucrativa indústria das prisões, um mercado que dobra a cada dois anos. Consultores de investimento aconselham os clientes, hoje, a investirem em biotecnologia, internet ou... prisões! O que mudou na realidade foi o crescimento do neoliberalismo, caracterizado por uma economia desregulada, com retração do Estado social e desenvolvimento do Estado penal para controlar desordens sociais e urbanas.
O aumento do aparato judicial é flagrante nos EUA, seguido da Europa e também do Brasil. O neoliberalismo postula um Estado mínimo, mas utiliza um Estado penal-policial cada vez maior, uma aparente contradição entre dois princípios que, na verdade, tornam-se complementares.
EUA: Microsoft ou prisões?
Punir os pobres é a nova tecnologia de gestão da miséria nas sociedades desenvolvidas, principalmente os Estados Unidos. De todos os países adiantados, é o que tem o regime econômico mais desenvolvido e mais favorável à ditadura de mercado, junto a um Estado social pouco desenvolvido. Os resultados são desastrosos. Pouco se fala da face oculta do modelo americano: o desenvolvimento extraordinário do Estado penal.
Os EUA são hoje os maiores carcereiros do mundo, com 2 milhões de pessoas atrás das grades e 6 milhões sob controle penal.
Nada disso é teoria, são conclusões comprovadas pelos orçamentos nacionais de muitos países. Para inchar esse Estado penal, os EUA utilizam meios extraordinários de redução dos orçamentos da educação, serviço social, saúde, carreando verba para a justiça, a polícia e as prisões. Há 25 anos, o país tinha 1.500 prisões, hoje tem 4.800. Em 1976, 380 mil presos. Vinte e cinco anos depois há 2 milhões de presos, 650 presos para cada 100 mil habitantes. O Estado da Califórnia tem hoje mais de 200 mil prisioneiros entre seus 33 milhões de habitantes. Desde 1994 gasta mais a cada ano com o setor, e reduz as verbas das universidades. Um guarda de prisão, hoje, ganha mais que um professor.
Esta é a segunda função do novo sistema, guardar num depósito os inúteis, os que não têm mais função na nova economia capitalista de serviços. Seu lugar é em bairros de relegação urbana, os guetos, ou em prisões. O sistema penitenciário americano tornou-se o terceiro maior empregador do país, com 650 mil empregados. Antes dele vêm empresas que prestam serviços terceirizados. Quem não aceita trabalho terceirizado, vai preso e acaba fazendo o trabalho.
Então eu pergunto, o que realmente representa melhor a economia americana? Os 24.000 empregados da Microsoft ou os 650.000 que trabalham nas prisões?
Política penal, um instrumento de mercado
Os ideólogos dizem que esse encarceramento em massa reduziu a criminalidade, mas os dois fatores não têm relação alguma. A política penal tornou-se autônoma, seu discurso desvinculou-se da questão do crime para funcionar como instrumento de regulação do mercado, da mão-de-obra desqualificada, e de cunho ideológico, simbólico, reforçando a discriminação contra os pobres, os negros, fazendo-os crer que estão em situação social inferior por conta de sua própria incapacidade.
O Estado penal americano gasta mais de 50 bilhões de dólares em prisões e gera um custo social gigantesco, desestabilizando bairros pobres, rotinizando a presença da polícia. Hoje, ser preso é um fato banal nos bairros pobres americanos. Desenvolvi um trabalho de campo numa academia de boxe de um gueto negro americano em Chicago. Certo dia, os colegas estranharam a ausência de um dos alunos mais dedicados, e o treinador, tranqüilizando-os, disse que não havia acontecido nada, apenas ele tinha sido preso – como se dissesse que ele fora comprar pão na esquina! Se a prisão é banalizada, doses cada vez mais fortes serão usadas para obter o mesmo efeito.
Dentro das prisões a situação também vem piorando. Os Estados Unidos, com essa política, em 1980 passaram a precisar de uma nova prisão de mil lugares por semana. Assim, por uma razão prática, tiveram que entregar sua construção, e todo seu projeto e administração, ao setor privado, o que antes ainda atende a um motivo ideológico, o de privatizar todos os serviços possíveis e anular cada vez mais o Estado. O setor privado reduz até a comida para cortar gastos e aumentar o lucro. As prisões, que já eram desumanas, agora se tornam inumanas.
A reabilitação de presos deixou de ser um objetivo do sistema, não dá lucro. A única função do sistema carcerário americano atual é punir, punir para que o criminoso “sinta na carne” o mal que teria causado, ou para mantê-lo afastado das ruas. Na verdade, por que se encarcera? Por medo e por desprezo ao pobre. A prisão promete a falsa solução de tornar invisíveis os problemas sociais, mas na verdade ela os concentra e agrava.
“A burguesia brasileira deseja restabelecer uma ditadura?”
O Brasil tem uma economia de desigualdades sociais vertiginosas e pobreza de massas combinadas, que alimenta o crescimento da violência criminal, flagelo social brasileiro. Não desenvolveu um Estado social que proteja o povo da economia de mercado. Os pobres não sobrevivem nas cidades, então se voltam para a economia das ruas ou para o crime. Como fator específico, a violência é agravada pela intervenção das forças da ordem e por um Judiciário que não garante direitos a todos os cidadãos.
Agora, atinge uma encruzilhada, e começa a estudar medidas made in USA de limpar as ruas. Se adotá-las, é certo que vai agravar seus males. A América fascina outras nações do planeta, como grande símbolo da sociedade do século XXI. Todos querem parecer modernos. Assim, para países como o Brasil, que costumam adotar políticas econômicas ditadas pelo FMI, é natural que adotem também as demais políticas. Na Argentina já se faz o discurso da tolerância zero e da demonização dos pobres. Começa-se por importar os discursos, e há tentação de, depois, importar as políticas.
Que alternativa histórica será escolhida pela burguesia brasileira, que hoje controla sozinha a economia, a política, a mídia? Obstruir os princípios da legalidade? Brasil, Argentina, Chile, já experimentaram regular a ordem com polícia e prisão, e têm bem desenvolvido todo o aparato, inclusive o jurídico, usado para controlar a oposição, na época considerada como hoje o é a população indesejada. Não se pode falar de crime e violência sem tratar do problema da justiça social, no sentido mais nobre e geral do termo. Adotar a criminalização da miséria, hoje, pode significar a reanimação de um passado autoritário.
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