CARÊNCIA E NECESSIDADE
Uma prisão é um lugar onde falta muita coisa e onde os objetos mudam de função com muita criatividade o tempo todo, por conta da necessidade. Não é fácil conseguir uma caneta, um papel, uma tinta pra pintar, um cigarro pra fumar, uma bebida, um livro, um sapato, até um copo pra beber uma água. Não se trata só de reciclar, o objeto suaviza tua necessidade.
Não é só na prisão, é uma coisa da situação de violência, da exclusão, da indiferença.
(isso me lembra o Artaud falando da pintura do Van Gogh, dizendo que ele ao pintar os objetos pintava esse amor que as coisas têm por nós. Uma cadeira que recebe a nossa bunda é de um amor que só a coluna cansada pode perceber. Um livro, com suas letrinhas encarrilhadas nos espera com uma paixão de idéias, significados, sei lá, tanto amor.)
Preâmbulo pra falar dos objetos, cenários e figurinos, da peça.
Mineiro, barroco, desesperado na sua composição plástica, sempre aquela profusão, o Gabriel é nosso conhecido pelos seus cenários generosos de tantas coisas e palavras. Mas quando começamos a ensaiar lá no galpão do grupo do Fábio no Cambuci, pouco a pouco o Gabriel foi jogando pras cenas os objetos que estavam lá no galpão, ao nosso redor, quietinhos, nos olhando, sem falar nada. Eles estavam ali, naquela presença carinhosa que as coisas tem com a gente sem que a gente se toque e pelas mãos e intelegência emocional do diretor eram transformistas transformados da sua função e virando artistas também, falando em cena, sagrandos, como são sagrados objetos das prisões e das carências.
Era como se estivéssemos fazendo uma peça sem meios ou palavras pra expressá-la, e aquelas coisas coisas companheiras que estavam ali por perto viessem junto falar dessa história tão difícil. Então, uma caixa de privada, esquecida, furada, com aquele cordãozinho encardido, um objeto aposentado, foi trabalhar no cenário da Veronique de Millus, e agora está lá toda azul, ou uma cafeteira que tem suas lágrimas misturadas com as lágrimas do Nego Preto, um banco de escola, e por aí vai...
Já falei melhor disso, mas não custa chamar atenção.
É muito especial.
PREPARAÇÃO CORPORAL
Um dia o Gabriel assumiu a preparação corporal da peça. Propôs um jogo de futebol. Encostamos as mesas, gol prum lado e o outro, dois times de atores, como éramos cinco, o Guga e o Cacá, eram jogadores convidados para que pudéssemos fazer 6 jogadores, com 3 de cada lado. Os resultados foram verdadeiros massacres: 12 a 6, 10 a 2, nem me lembro mais, tantas foram as vitórias pro meu time.
E sutilmente foi assim que começamos a passar a bola um pro outro, a abrir os olhos pro jogo nas laterais, prestar atenção no campo todo e a pensar nas jogadas, a jogar sem bola, a se cheirar, se espremer, se pegar, se suar, xingar, competir e chegar no ponto que foi o principio do acontecimento do dia 2 de outubro de 1992 no Carandiru: um jogo de futebol no campo do pavilhão nove.
Hoje antes de começar os ensaios, lá na concentração ajoelhamos e rezamos. Depois mandamos merda!
Me lembrei que o futebol no seu principio era um jogo feito com a cabeça dos vencidos. Era uma forma dos guerreiros mostrarem sua macheza: cortava-se a cabeça do inimigo e se batia uma bola com ela. Gabriel me falou que aqui na América os índios faziam a mesma coisa só que com as mãos, um basquete!
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3 comentários:
Pascoal, você nem sabe o quanto é importante você registrar esse processo de criação de Salmo 91 no galpão da Aclimação. É tocante sua generosidade ao falar do diretor, das escolhas pelos objetos, do amor dos objetos. E seu jeito de descrever o bate-bola como preparação corporal ganha a real dimensão dessa verdadeira estratégia de um diretor tarimbado como o Gabriel, ou seja, fica claro que a preparação era bem mais do que só corporal. Parabéns por sua sensibilidade, que, eu bem sei, contagia todos nós envolvidos na montagem desse espetáculo.
Pascoal, gostaria de agradecer não somente pela explosão de sentimento despertada pela sua atuação e de todo o elenco em Salmo91, mas também por descrever tão ricamente o processo despertado pelo Gabriel em trazer à tona a pulsação latente no espaço e nos objetos para contar histórias, descrever e mais ainda, "sentir".
Um cenário brilhante que cosegue sem ornamentações, conter toda a complexidade e contradições existentes neste espaço.
Gostaria de humildemente acrescentar um trecho de um conto de Kafka que muito me lembra não somente a peça como também o universo das Penitenciárias em geral:
"-Ele conhece a sentença?
-Não -disse o oficial, e logo quis continuar com suas explicações.
Mas o explorador o interrompeu:
-Ele não conhece a própria sentença?
-Não - repetiu o oficial e estancou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada da sua pergunta; depois disse:
- Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne."
(Na colônia Penal. Franz Kafka)
Um grande abraço a todos e mta merda
Marisa
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